Do amor... eu sei. Mais do que o viver, eu sei-O. Ele há.
Desde sempre me lembro da tia Aurora e do tio Henrique. Moravam na casa de pedra grande, a da curva, a da eira. Na aldeia transmontana onde passávamos férias, onde brincávamos no rego. A tia Aurora dos ais e uis e dos beijos estalados e do está tão crescida a pobrezinha ! Das lágrimas fáceis nos olhos fervorosos e dos ai que lindos, coitadinhos ! Enchia-nos de cuidados e de mimos, sempre com uma mão no coração de tanta alegria. E a outra lançada ao céu para dividir o que não lhe cabia. De xaile, de buço, de tamancos, de fados cantados e sentidos. E das meias para dormir que nos tricotava religiosamente todos os anos. Eram quatro as tias vivas, aparentemente parecidas. Mas esta tinha um fado, um destino... maior. Mágico. O tio Henrique era o malandro. Dos olhinhos pequenos sempre sorridentes. Das piadas picantes que nos ensinavam até o que depois ainda não sabíamos. Dos palavrões, dos loucos e dos moucos e dos rais parta os doutos ! Mas sempre a rir, feliz de ser, sempre a fazer-nos cúmplices. Ela com os pecados, ele com o perdão...
Foi namoro de janela. A janela. Por anos e anos e mais de 20 anos. Que a família dele tinha terras e a irmã não queria cá partilhas. Mas tanto amadureceu que o casamento fez-se, já ia a Aurora com 48 e o Henrique com 41. Isto soube eu mais tarde, quando já os imaginava num cruz credo home, qu'isso é pecado ! Num faxo-te isto e aquilo e até te lebo ao céu ! Mas nunca o vi desrespeitá-la. Era ela a puxar pelos santinhos e ele a barafustá-la, como numa coreografia. Em que os actores não conseguiam esconder o amor que os unia.
Ela adoeceu primeiro, foi-se num suspiro. Aos 80 e. Ele lá ficou mais moço a precisar de cuidados, apoiado ao cajado e aos outros. Era o meu tio avô favorito, eu era o seu "estardalhão": Lá bem o estardalhão ! E era eu.
Outras férias houve para o visitar. Não sem ouvir antes as histórias, as histórias... Que ela por lá andava. Que o cajado mudava de lugar. E a caneca d'água, e as pedras. Que caíam do tecto agora forrado. E eu que acredito nem acreditava. Pois se não foi comigo ! Estava na sala, sentado. Quem é, quem é ? Já não me via. Mas fez a festa, ofereceu o tinto. E retomamos a cumplicidade malandra dos nossos subentendidos. E das palavras que já não se entendem mas se respondem como sempre foram respondidas. Vamos até à varanda ? Vamos. Apanhar ar, andar um bocadinho. E sentamo-nos à mesa a saborear o vinho. Mas os olhos que mal me vêem vêem mais do que eu: diz ele que lá vem ela, de braço dado com a outra. Eu que só via o quintal de pedra e as galinhas... E então, num 'tás a bê-la ? Ali, ali, e apontava. A prima das histórias não via mas confirmava. Podia mais com os fantasmas que com a descrença dos vivos.
Até que pegamos nele para o devolver à sala, cada braço dele enganchado numa. E começou a chuva... Do nada, do tecto, do ar. Pedrinhas apareciam, caíam e rolavam pelo chão. Inacreditável... E eu a olhar para o forro, moderno, inviolável. E mais pedras do nada e um pooom ! Uma chave velha a cair-me aos pés. E mais outras três.
O que se pensa quando se vê, o que não se pensa poder ver ? Nada. Nem maravilhada nem assustada. Nada. Uma história para contar. Como se só ao contá-la fizesse sentido. Como se fosse preciso alguém negá-la para que sim, sim! tivesse acontecido. Porque lá voltamos e houve mais. E lá foi o padre e o ateu e o filósofo e o juiz. E cada um voltava com o seu juízo mesmo se o juízo não coubesse ali. Crenças descrenças ou teorias, mas um só refrão: eu vi !
Algum tempo depois foi um ar que se lhe deu. Ou uma aurora, que ela não era mulher para o deixar sozinho. Esperaram sempre um pelo outro afinal... e de braço dado lá foram, com o seu amor eterno. Para essa vida que depois da vida há.
Foi-se o Henrique e não caiu mais nada. A chave está comigo...